Desapropriação Indireta em Rodovias: Indenização e Prazos
Palavras-chave: desapropriação indireta, indenização por desapropriação, direito administrativo, construção de rodovias, apossamento administrativo, prazos de prescrição, juros compensatórios, juros moratórios, Guella Advocacia
Introdução
A desapropriação indireta é um fenômeno recorrente no direito administrativo brasileiro, especialmente na construção de estradas e rodovias. Ocorre quando o Poder Público se apropria de um bem privado sem seguir o procedimento legal de desapropriação e sem pagar uma indenização prévia, privando o proprietário do uso de seu imóvel. Embora não exista uma lei específica para essa figura, a jurisprudência brasileira a reconheceu como uma realidade que exige soluções jurídicas claras.
Conceito de Desapropriação Indireta e Distinção de Outras Intervenções do Estado
Para entender a desapropriação indireta, é preciso primeiro conhecer a desapropriação direta. Esta é o procedimento legal pelo qual o Estado, por necessidade, utilidade pública ou interesse social, retira compulsoriamente um bem de um particular, incorporando-o ao patrimônio público mediante o pagamento de uma indenização prévia, justa e em dinheiro. Esse processo regular exige uma declaração formal de utilidade pública e o respeito ao devido processo legal (arts. 5º, XXIV e 5º, LIV, da Constituição Federal).
A desapropriação indireta, por outro lado, acontece quando o Poder Público simplesmente se apossa de um bem particular sem seguir essas formalidades. Com esse apossamento irregular, o bem é incorporado ao domínio público, especialmente quando nele se realiza uma obra, restando ao proprietário apenas a opção de buscar na justiça uma indenização por perdas e danos. Trata-se de um ato ilícito da Administração, caracterizado pela doutrina como uma conduta abusiva e inconstitucional por violar o direito de propriedade.
A consequência jurídica — a conversão da obrigação de restituir o imóvel em uma obrigação de indenizar — revela uma complexa ponderação de princípios constitucionais. De um lado, tem-se a garantia do direito de propriedade (art. 5º, XXII, da Constituição Federal); de outro, a concretização do interesse público e da função social da propriedade, materializada na obra já realizada (art. 5º, XXIII, da CF). A solução judicial de converter o direito reivindicatório do proprietário em um direito compensatório representa uma construção pragmática. Diante da impossibilidade fática e do alto custo social de determinar a demolição de uma rodovia, o Judiciário valida, ex post facto, os efeitos do ato ilícito, mas impõe ao Estado o dever de indenizar plenamente o particular, nos termos do art. 5º, XXIV, da Constituição.
É fundamental distinguir a desapropriação indireta de outras formas legais de intervenção do Estado na propriedade:
Limitação Administrativa:
São restrições gerais impostas pelo Estado a propriedades indeterminadas para atender ao interesse público, como regras de zoneamento ou normas ambientais. Elas não retiram a propriedade do particular, apenas condicionam seu uso, e, por isso, geralmente não geram direito à indenização.
Ocupação Temporária:
É a utilização provisória de um imóvel particular para a execução de obras públicas, como o depósito de materiais. Prevista no art. 36 do Decreto-Lei 3.365/1941, essa ocupação é transitória e, ao final, o proprietário tem direito a uma indenização por eventuais prejuízos causados. A posse do Estado é temporária, e não há transferência de domínio.
Servidão Administrativa:
Trata-se de um ônus real imposto a um imóvel particular para assegurar a execução de obras ou serviços públicos, como a passagem de linhas de transmissão de energia. O proprietário não perde a titularidade do bem, mas tem seu uso limitado. A indenização só é devida se a servidão impuser um prejuízo específico e significativo ao proprietário.
Em resumo, a desapropriação indireta se diferencia por ser um ato à margem da lei, onde o Estado suprime de fato a propriedade privada. A solução jurídica para essa ilegalidade não é a devolução do bem (pois a obra pública já foi realizada), mas sim garantir ao proprietário o direito a uma indenização completa.
Quadro comparativo — desapropriação direta, desapropriação indireta, servidão administrativa e limitação administrativa
| Instituto | Conceito e Efeito na Propriedade | Indenização e Transferência de Domínio | Prazos e Juros | Exemplos em Rodovias |
|---|---|---|---|---|
| Desapropriação Direta | Ato formal para retirar o domínio do particular por utilidade pública, com processo legal. | Indenização prévia, justa e em dinheiro. Há transferência de domínio. | Juros compensatórios (se houver perda de fruição) e moratórios (se houver atraso no pagamento do precatório). | Abertura ou duplicação de rodovia seguindo o rito expropriatório. |
| Desapropriação Indireta | Apossamento fático e irregular de imóvel pelo Estado, sem processo formal, suprimindo o domínio. | Indenização posterior, incluindo perdas, danos e juros. Há transferência de domínio pela incorporação fática. | Prescrição de 10 anos (com obra) ou 15 anos (sem obra). Juros compensatórios (desde o apossamento) e moratórios (após prazo do precatório). | Construção de rodovia em área privada sem desapropriação formal. |
| Servidão Administrativa | Ônus real que restringe o uso do imóvel para um fim público específico, sem retirar o domínio. | Indenizável apenas se houver prejuízo específico e singular ao proprietário. Não há transferência de domínio. | Ações indenizatórias seguem prazos gerais contra a Fazenda Pública. | Implantação de faixas de domínio, passagens técnicas ou bueiros. |
| Limitação Administrativa | Restrição geral e impessoal ao uso da propriedade, imposta pelo poder de polícia. | Em regra, não há indenização, salvo se causar dano especial e anormal. Não há transferência de domínio. | Não se aplicam prazos ou juros, pois geralmente não há indenização. | Regras de recuo obrigatório ou de proteção ambiental ao longo de uma rodovia. |
Direito à Indenização: Quem Pode e Como Receber
O proprietário lesado pela desapropriação indireta tem o direito de buscar uma indenização integral. Essa reparação deve cobrir o valor de mercado do bem, as benfeitorias existentes e os juros aplicáveis, de forma a recompor integralmente o patrimônio perdido.
Legitimidade para pedir a indenização (legitimidade ativa): A regra é clara: somente quem era o proprietário do imóvel na época em que o Poder Público se apossou dele tem direito a pedir a indenização. Isso porque foi essa pessoa quem sofreu o prejuízo direto. Uma questão importante surge quando o imóvel é vendido após a ocupação pelo Estado. Nesse caso, o novo comprador não tem direito à indenização. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou essa tese no Tema 1004, entendendo que o preço de compra do imóvel já refletiu o ônus da ocupação pública (ou seja, o comprador pagou mais barato). Conceder indenização ao novo dono configuraria enriquecimento sem causa. Assim, quem adquire um imóvel já afetado por uma obra pública não "compra" junto o direito de ser indenizado pelo Estado. Existem raras exceções a essa regra, como em casos de doação ou herança, onde o novo proprietário não pagou pelo bem e, portanto, não se beneficiou de um preço reduzido.
A tese do Tema 1004 do STJ consolida o direito à indenização como um direito pessoal do proprietário original, e não como um acessório do imóvel (obrigação propter rem). A partir do momento em que o Estado se apossa do bem, o direito à indenização se desvincula da propriedade e adquire um caráter creditório. Essa regra impõe um ônus de due diligence (diligência prévia) em transações imobiliárias, pois um comprador diligente, ao constatar a ocupação, exigirá um deságio no preço correspondente à área perdida, ciente de que não poderá pleitear indenização. O precedente, portanto, influencia o comportamento econômico dos agentes, a avaliação de ativos e a alocação de riscos em contratos de compra e venda.
Contra quem a ação deve ser movida (legitimidade passiva): A ação de indenização deve ser proposta contra o ente público responsável pela obra, seja a União, o Estado ou o Município, ou a autarquia executora, como um Departamento de Estradas de Rodagem (DER).
Prazos Prescricionais: Até Quando se Pode Pedir a Indenização?
O prazo para entrar com a ação de indenização por desapropriação indireta mudou ao longo do tempo. Inicialmente, a jurisprudência entendia que o prazo era de 20 anos, por analogia ao prazo de usucapião extraordinária do Código Civil de 1916 (Súmula 119/STJ). Com o Código Civil de 2002, esse prazo foi reduzido. Em 2020, o STJ, no julgamento do Tema 1019, pacificou a questão, estabelecendo duas regras principais:
- Prazo de 10 anos: Se o Poder Público realizou obras no imóvel (como a construção de uma estrada) ou o declarou formalmente como de utilidade pública. A contagem se baseia na analogia com o usucapião extraordinário "qualificado", previsto no parágrafo único do art. 1.238 do Código Civil.
- Prazo de 15 anos: Se houve apenas o apossamento pelo Estado, mas sem a realização de obras ou uma destinação pública específica. Nesse caso, aplica-se o prazo geral de usucapião extraordinária do art. 1.238 do Código Civil.
A analogia com a usucapião é um mecanismo que confere coerência dogmática ao sistema. A usucapião é o modo de aquisição da propriedade pela posse prolongada. Ao aplicar essa lógica, o Judiciário cria uma simetria: o mesmo tempo que permitiria ao Estado "usucapir" o bem é o prazo que o proprietário tem para exigir a indenização. O direito do particular prescreve no momento em que a situação fática do bem, já incorporado ao patrimônio público, se consolida juridicamente pelo decurso do tempo, conferindo segurança jurídica e estabilizando as relações.
Juros Compensatórios e Moratórios: Entendendo os Acréscimos na Indenização
A indenização na desapropriação indireta é acrescida de dois tipos de juros, com finalidades diferentes.
Juros Compensatórios
- Finalidade: Compensar o proprietário pela perda do uso e do rendimento do imóvel desde o momento em que o Estado o ocupou até o efetivo pagamento da indenização. Funcionam como uma reparação por lucros cessantes.
- Termo Inicial: Incidem desde a data da ocupação (apossamento) do imóvel pelo Poder Público (Súmula 114/STJ).
- Taxa: A taxa variou ao longo do tempo. O STJ (Súmula 408) consolidou o seguinte:
- 12% ao ano para ocupações ocorridas antes de 11/06/1997.
- 6% ao ano para ocupações entre 11/06/1997 e 13/09/2001 (período de vigência de uma Medida Provisória).
- 12% ao ano novamente para ocupações a partir de 14/09/2001, após o STF suspender a limitação da taxa na ADI 2.332.
- Termo Final: Os juros compensatórios incidem até a data de expedição do precatório (o documento que formaliza a dívida do governo a ser paga).
Recentemente, a Lei 14.620/2023 alterou o art. 15-A do Decreto-Lei 3.365/41, gerando uma nova controvérsia. A nova redação parece condicionar os juros compensatórios à comprovação de "perda de renda sofrida pelo expropriado", ou seja, a lucros cessantes efetivamente demonstrados. Isso colide com a jurisprudência histórica do STF (Súmula 618), que presume o prejuízo pela simples perda da posse, tornando a incidência dos juros automática. Essa alteração legislativa transfere ao proprietário um ônus probatório que antes não existia e pode esvaziar a função dos juros em casos de imóveis não produtivos, criando uma nova frente de debate sobre a violação do princípio da justa indenização.
Juros Moratórios
- Finalidade: Penalizar o Poder Público pelo atraso no pagamento da indenização após a condenação judicial definitiva.
- Taxa: A taxa é de 6% ao ano, conforme estabelecido no art. 15-B do Decreto-Lei 3.365/41.
- Termo Inicial: Este é um ponto crucial. Os juros moratórios não incidem imediatamente após a decisão judicial. De acordo com a Súmula Vinculante 17 do STF, eles só começam a contar a partir de 1º de janeiro do ano seguinte àquele em que o precatório deveria ter sido pago. Isso ocorre porque a Constituição (art. 100) concede ao Poder Público um "período de graça" para organizar o pagamento. A mora só se configura após o esgotamento desse prazo constitucional.
Quadro — Juros Moratórios em Desapropriação
| Característica | Descrição | Base Legal / Jurisprudencial |
|---|---|---|
| Finalidade | Penalizar o ente público pelo atraso no pagamento do valor da condenação. | Art. 15-B do Decreto-Lei 3.365/41 |
| Percentual | 6% ao ano (6% a.a.). | Art. 15-B do Decreto-Lei 3.365/41 |
| Termo Inicial | A partir de 1º de janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria ser feito. | Súmula Vinculante 17 do STF; Art. 100 da Constituição Federal |
| Observação | "Não há mora durante o ""período de graça"" constitucional para pagamento do precatório." | Tema 96 de Repercussão Geral do STF |
Quadro Comparativo — Juros Compensatórios vs. Juros Moratórios
| Critério | Juros Compensatórios | Juros Moratórios |
|---|---|---|
| Natureza Jurídica | Indenizatória (reparação por perdas e danos). | Punitiva (sanção pela mora/atraso). |
| Finalidade | Compensar pela perda antecipada da posse e fruição do bem. | Penalizar o Poder Público pelo atraso no pagamento do precatório. |
| Base de Cálculo | Valor da indenização (valor do bem + benfeitorias). | Valor da indenização (principal + juros compensatórios). Súmula 102/STJ. |
| Termo Inicial | Data do apossamento administrativo / ocupação do imóvel (Súmula 114/STJ). | 1º de janeiro do ano seguinte ao que o precatório deveria ser pago (Súmula Vinculante 17/STF). |
| Termo Final | Data da expedição do precatório. | Data do efetivo pagamento. |
| Taxa Aplicável | 12% a.a. (12% a.a.) (regra geral, com exceções históricas) (Súmula 618/STF). | 6% a.a. (6% a.a.) (Art. 15-B do DL 3.365/41). |
Conclusão
A desapropriação indireta, embora seja um ato ilícito do Poder Público, recebeu do sistema jurídico brasileiro uma resposta estruturada para proteger o cidadão. A jurisprudência, especialmente do STF e do STJ, foi fundamental para definir os direitos e deveres de cada parte. Em síntese, o proprietário que tem seu imóvel ocupado para a construção de uma estrada ou rodovia sem o devido processo legal tem direito a uma indenização justa e integral. Esse direito, contudo, tem natureza pessoal e pertence a quem era o dono no momento da ocupação, e não a compradores posteriores. Os prazos para buscar essa reparação são de 10 ou 15 anos, a depender da existência de obras no local. Por fim, a indenização deve ser acrescida de juros compensatórios, para reparar a perda do uso do bem, e de juros moratórios, caso o Estado atrase o pagamento após a condenação e o prazo constitucional. Ainda que o ideal fosse a erradicação dessa prática ilegal, o ordenamento jurídico atual busca equilibrar os interesses, garantindo que o prejuízo imposto ao particular seja devidamente compensado, reafirmando a proteção ao direito de propriedade previsto na Constituição.
André Luiz Guella
OAB/SC 22.640
22 de setembro de 2025.