Impugnação ao Laudo Pericial no CPC: O Papel do Assistente Técnico
Palavras-chave: Impugnação ao laudo pericial, Art. 477 CPC, assistente técnico, parecer técnico, quesitos suplementares, esclarecimentos do perito, cerceamento de defesa, prova pericial, contraditório técnico, Direito Processual Civil, Código de Processo Civil, advogado, processo judicial, Guella Advocacia
Introdução
No intrincado tabuleiro do processo judicial, onde a verdade dos fatos frequentemente se esconde sob véus de complexidade técnica ou científica, a prova pericial emerge como um farol, guiando o julgador por entre as penumbras do desconhecido. Contudo, este farol, por mais essencial que seja, não é imune a falhas, desvios ou interpretações equivocadas. A higidez do laudo pericial, portanto, não é um dado adquirido, mas uma construção que se submete ao rigoroso escrutínio do contraditório. É nesse contexto que a impugnação ao laudo pericial, meticulosamente delineada pelo Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015), e o papel crucial dos assistentes técnicos ganham contornos de extraordinária relevância.
Este artigo propõe-se a mergulhar nas profundezas do mecanismo de contraditório técnico estabelecido pelo CPC/2015, com especial enfoque na análise minuciosa do artigo 477, que rege o procedimento de manifestação das partes e dos assistentes técnicos após a apresentação do laudo pelo perito do juízo. Dissecaremos as etapas, os prazos, as estratégias e as implicações desse "duelo de experts", que visa não apenas a refutar conclusões periciais equivocadas, mas, fundamentalmente, a subsidiar o magistrado com um panorama técnico plural e robusto, permitindo-lhe aproximar-se da verdade objetiva e proferir uma decisão justa e bem fundamentada. A atuação do assistente técnico, de mero coadjuvante no sistema anterior, é alçada a um patamar de protagonismo, tornando-se peça-chave na fiscalização, na crítica e na proposição de alternativas técnicas. Este estudo destina-se a advogados, que necessitam dominar as ferramentas de impugnação; a juristas, interessados na dinâmica probatória; e ao público leigo, para que compreenda como o direito assegura a busca pela melhor prova técnica.
1. O Assistente Técnico: Guardião do Contraditório Especializado
Antes de adentrarmos o cerne da impugnação delineada no art. 477 do CPC, é imperativo dimensionar a figura do assistente técnico. Longe de ser um mero espectador, o assistente técnico é o perito da parte, sua voz técnica no processo, essencial para a materialização do contraditório e da ampla defesa (Art. 5º, LV, CF/88) no âmbito da prova pericial.
O Art. 465, §1º, II e III do CPC estabelece que, após a nomeação do perito judicial, as partes serão intimadas para, no prazo de 15 dias, arguir o impedimento ou a suspeição do perito, se for o caso, indicar assistente técnico e apresentar quesitos. Já o Art. 466 do CPC é taxativo: "O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso. §1º Os assistentes técnicos são de confiança da parte e não estão sujeitos a impedimento ou suspeição."
Esta disposição é crucial. Ao declarar que o assistente técnico é de confiança da parte e não se sujeita a impedimento ou suspeição, o legislador reconhece sua natureza parcial – no sentido de que atua para defender os interesses técnicos da parte que o indicou –, o que não diminui sua importância, mas, ao contrário, a define. Sua função não é a de produzir um laudo isento como o do perito judicial, mas sim a de oferecer um contraponto técnico qualificado, um parecer crítico que pode corroborar, complementar ou, mais frequentemente, divergir fundamentadamente do laudo oficial.
O trabalho do assistente técnico desdobra-se em diversas fases:
-
Fase Pré-Perícia:
- Auxílio na formulação de quesitos iniciais (Art. 465, §1º, III) e quesitos suplementares (Art. 469): A qualidade dos quesitos é determinante para o escopo e a utilidade da perícia. O assistente técnico, com seu conhecimento especializado, pode identificar os pontos nodais que devem ser questionados ao perito judicial.
- Análise da qualificação do perito nomeado: Pode subsidiar a parte com informações para eventual arguição de falta de especialização do perito judicial para o caso concreto.
-
Fase de Diligências Periciais:
- Acompanhamento dos trabalhos do perito judicial (Art. 466, §2º): "O perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias." Esta prerrogativa é vital para que o assistente observe a metodologia empregada, os dados coletados e os critérios utilizados pelo perito do juízo em tempo real, possibilitando a formulação de um parecer mais robusto.
-
Fase Pós-Laudo (Impugnação):
- Análise crítica e minuciosa do laudo pericial: Este é o momento nuclear de sua atuação para a impugnação. O assistente esmiuçará o laudo oficial, buscando inconsistências, omissões, erros metodológicos, conclusões não suportadas pelos dados, ou qualquer outro vício que comprometa sua validade ou confiabilidade.
- Elaboração do parecer técnico (Art. 477, §1º): Este parecer é a materialização da análise crítica. Nele, o assistente apresentará suas próprias conclusões, justificando as divergências com o perito judicial, apontando os equívocos e, se possível, apresentando uma solução técnica alternativa. Este documento será a espinha dorsal da manifestação da parte.
- Subsídio para esclarecimentos e audiência: O assistente auxiliará o advogado a formular pedidos de esclarecimentos ao perito judicial e a preparar-se para eventual oitiva do perito em audiência (Art. 477, §3º), podendo ele próprio ser chamado a prestar esclarecimentos.
A indicação de um assistente técnico qualificado e experiente é, portanto, um investimento estratégico para a parte que busca um contraditório técnico efetivo. Sem ele, a parte fica em considerável desvantagem para questionar as conclusões de um especialista nomeado pelo juízo.
2. O Laudo Pericial e a Gênese da Impugnação: O Que se Busca (e o Que se Critica)
Para entender a impugnação, é preciso revisitar brevemente o que se espera de um laudo pericial. O Art. 473 do CPC estabelece requisitos formais e materiais para o laudo, que, se não observados, podem ensejar sua crítica:
- Exposição do objeto da perícia (inciso I): Clareza sobre o que foi periciado.
- Análise técnica ou científica realizada (inciso II): Descrição do trabalho desenvolvido.
- Indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área (inciso III): Este é um ponto crucial. A ausência de descrição do método, ou a utilização de método inadequado, obsoleto ou não consolidado na área de conhecimento, é um forte motivo para impugnação.
- Resposta conclusiva a todos os quesitos (inciso IV): O perito deve responder objetivamente a todas as perguntas formuladas pelo juiz, pelas partes e pelo MP. Respostas evasivas, incompletas ou a ausência de resposta a quesitos relevantes configuram falha grave.
- Linguagem simples e com coerência lógica (Art. 473, §1º): O laudo deve ser compreensível, evitando jargões excessivos sem a devida explicação, e as conclusões devem decorrer logicamente da análise apresentada.
- Vedação a opiniões pessoais que excedam o exame técnico (Art. 473, §2º): O perito deve ater-se à sua designação, sem invadir a seara jurídica ou emitir juízos de valor que não sejam estritamente técnicos.
- Apresentação de documentos, fotografias e outros elementos para elucidar as conclusões (Art. 473, §3º): A prova documental ou visual que suporta as conclusões deve ser parte integrante do laudo.
A faculdade concedida ao perito e aos assistentes técnicos pelo artigo 473, §3º, do Código de Processo Civil, representa uma ferramenta de crucial importância para a elucidação da matéria fática controvertida. Ao permitir que os especialistas se valham de "todos os meios necessários", incluindo a solicitação de documentos em poder das partes, de terceiros ou em repartições públicas, o legislador buscou garantir a elaboração de um laudo pericial completo, robusto e fidedigno. Esta prerrogativa instrumentaliza o princípio da busca da verdade real, permitindo que o auxiliar do juízo transcenda os limites do que foi inicialmente carreado aos autos para formar sua convicção técnica. Contudo, essa ampla autorização não constitui um "cheque em branco". A jurisprudência pátria, em consonância com os princípios da razoabilidade, da cooperação e da lealdade processual, tem delineado contornos precisos para o exercício dessa função, evitando que a atuação pericial se converta em uma devassa indiscriminada ou em uma ferramenta para sanar a inércia probatória das partes.
O primeiro e mais fundamental limite imposto à atividade requisitória do perito é o da pertinência e necessidade em relação ao objeto da perícia, conforme delimitado pela decisão saneadora e pelos quesitos apresentados. O perito não pode, sob o pretexto de buscar esclarecimentos, expandir o escopo de sua investigação para fatos que não são objeto de seu mister. A jurisprudência é pacífica em rechaçar solicitações genéricas ou que configurem uma "expedição de pesca" (fishing expedition), ou seja, a busca aleatória por qualquer documento que possa, eventualmente, revelar alguma irregularidade. O nexo de causalidade entre o documento solicitado e a resposta a um quesito específico deve ser claro. Assim, se a perícia contábil visa apurar um suposto desvio em um contrato específico, não se justifica, a princípio, a requisição de balancetes de uma década inteira da empresa, a menos que tal amplitude seja estritamente necessária e devidamente justificada pelo expert perante o juízo.
Ademais, a atuação pericial encontra barreiras nos direitos e garantias fundamentais das partes e de terceiros, como o sigilo de dados (bancário, fiscal, de comunicações) e segredos industriais ou comerciais. Embora o §3º do art. 473 autorize a busca de informações, essa prerrogativa não confere ao perito o poder de quebrar sigilos constitucionalmente protegidos por conta própria. Nesses casos, a jurisprudência exige que o perito, ao constatar a necessidade de tais informações, comunique o fato ao juiz, fundamentando a imprescindibilidade do dado para a realização de seu trabalho. Caberá ao magistrado, e somente a ele, após ponderar os interesses em conflito e garantir o devido processo legal, decidir sobre a quebra do sigilo ou sobre a forma como o acesso a informações sensíveis será concedido, muitas vezes determinando que o processo tramite em segredo de justiça para proteger tais dados.
A questão mais delicada surge no confronto entre a prerrogativa do perito (art. 473, §3º) e o ônus da parte de instruir a petição inicial e a contestação com os documentos indispensáveis à prova de suas alegações (art. 434 do CPC). A regra geral, ditada pelo princípio da eventualidade e pela preclusão, é que a parte não pode se valer da atuação pericial para "produzir" uma prova documental que já deveria ter sido apresentada em momento oportuno. O perito não é um substituto da parte em seu ônus probatório. Permitir que o expert requisite um documento que a parte deveria ter juntado inicialmente, e que esta o apresente sem maiores consequências, seria esvaziar a regra da preclusão e criar uma "janela" indevida para a correção da negligência processual. Portanto, o perito não pode, por iniciativa própria, decidir sua análise com base em um documento que deveria estar nos autos mas não está, simplesmente porque a parte o apresentou diretamente a ele.
Contudo, a jurisprudência e a doutrina abrem uma exceção crucial, que não visa a beneficiar a parte inerte, mas a garantir a viabilidade da própria perícia. Se o documento faltante, ainda que sujeito à preclusão do art. 434, for tecnicamente indispensável para a realização do trabalho pericial – ou seja, sem ele a perícia se torna impossível ou imprestável –, a situação muda de figura. Nesse caso, o perito deve informar o fato ao juízo, justificando por que o documento é um pré-requisito para responder aos quesitos. O juiz, então, intimará a parte para que o apresente, sob as penas da lei (art. 400 do CPC), que incluem a presunção de veracidade dos fatos que a outra parte pretendia provar com o documento. A decisão judicial não sana a preclusão em favor da parte negligente, mas viabiliza a produção da prova pericial, cujo destinatário final é o próprio juízo, transferindo a consequência da omissão para o campo da valoração das provas e da eventual confissão ficta. Assim, o perito não decide com base em um documento "fora dos autos", mas provoca a sua juntada regular por meio de uma decisão judicial que pondera a necessidade da prova e a preclusão operada.
A impugnação, portanto, nasce da desconformidade do laudo com esses requisitos ou da discordância técnica com as premissas, métodos ou conclusões do perito.
3. Radiografia do Art. 477 do CPC: O Procedimento de Impugnação e o Contraditório Técnico Detalhado
O artigo 477 do CPC é o coração do procedimento de impugnação ao laudo pericial e da efetivação do contraditório técnico após a entrega do trabalho pelo perito do juízo. Vamos analisá-lo pormenorizadamente:
Art. 477. O perito protocolará o laudo em juízo, no prazo fixado pelo juiz, pelo menos 20 (vinte) dias antes da audiência de instrução e julgamento. Este caput estabelece um prazo mínimo para a juntada do laudo antes da audiência, visando garantir tempo hábil para as manifestações das partes. Contudo, a dinâmica processual, especialmente em processos eletrônicos, muitas vezes desvincula a entrega do laudo de uma audiência já designada, focando-se nos prazos subsequentes para manifestação.
§ 1º As partes serão intimadas para, querendo, manifestar-se sobre o laudo do perito do juízo no prazo comum de 15 (quinze) dias, podendo o assistente técnico de cada uma das partes, em igual prazo, apresentar seu respectivo parecer.
Este é o primeiro e crucial momento do contraditório pós-laudo.
- Prazo Comum de 15 Dias: O prazo é comum, ou seja, corre simultaneamente para todas as partes (autor, réu, e eventuais terceiros intervenientes ou litisconsortes). É um prazo preclusivo: a ausência de manifestação nesse período pode implicar aceitação tácita das conclusões periciais, salvo se o vício for de tal ordem que possa ser conhecido de ofício (nulidade absoluta, por exemplo, o que é raro). Advogados devem ter rigoroso controle sobre este prazo.
-
Manifestação da Parte: A "manifestação" da parte não é uma simples peça de discordância genérica. Deve ser técnica e juridicamente fundamentada. Idealmente, esta manifestação deve:
- Apontar especificamente as falhas, omissões, contradições ou equívocos do laudo pericial.
- Referenciar os pontos do laudo que estão sendo criticados.
- Fundamentar a crítica com base em argumentos lógicos, científicos, técnicos ou, se for o caso, em provas já existentes nos autos que contradigam o laudo.
- E, crucialmente, amparar-se no parecer do assistente técnico.
- Parecer do Assistente Técnico: O parágrafo faculta ao assistente técnico apresentar seu parecer no mesmo prazo. Este parecer não é a mesma coisa que a manifestação da parte, embora a subsidie. É um documento técnico, elaborado pelo especialista da parte, que pode:
- Concordar com o laudo judicial.
- Concordar parcialmente, apontando ressalvas ou complementações.
- Discordar totalmente, apresentando uma análise técnica alternativa, com metodologia e conclusões próprias.
- Analisar criticamente a metodologia e os achados do perito do juízo.
- Responder aos quesitos sob a ótica da parte que o contratou, contrapondo-se às respostas do perito oficial. A juntada de um parecer robusto do assistente técnico é a forma mais eficaz de impugnar um laudo pericial, pois transforma a discordância da parte, que é leiga em termos técnicos, em um debate entre especialistas.
§ 2º O perito do juízo tem o dever de, no prazo de 15 (quinze) dias, esclarecer ponto: I - sobre o qual exista divergência ou dúvida de qualquer das partes, do juiz ou do órgão do Ministério Público; II - divergente apresentado no parecer do assistente técnico da parte.
Este parágrafo estabelece o "segundo round" do contraditório, agora focado nos esclarecimentos do perito judicial.
- Dever de Esclarecer: Não se trata de uma faculdade, mas de um dever do perito. A recusa ou a apresentação de esclarecimentos evasivos pode ter consequências, inclusive a possibilidade de substituição do perito (Art. 468, II – quando "sem motivo legítimo, deixar de cumprir o encargo no prazo que lhe foi assinado") ou até mesmo a desconsideração de seu trabalho.
- Prazo de 15 Dias: O perito também tem um prazo para apresentar seus esclarecimentos.
-
Objeto dos Esclarecimentos:
- Divergência ou Dúvida (Inciso I): Qualquer ponto do laudo que tenha gerado dúvida ou sobre o qual haja divergência expressa na manifestação da parte (mesmo que não acompanhada de parecer de assistente, embora isso enfraqueça a impugnação), do juiz (que pode ter suas próprias dúvidas) ou do Ministério Público (quando atua como fiscal da ordem jurídica ou parte).
- Ponto Divergente no Parecer do Assistente (Inciso II): Este é um dos pontos altos do contraditório técnico. O perito do juízo é obrigado a enfrentar, tecnicamente, as divergências apontadas pelo assistente da parte. Ele deve justificar por que suas conclusões são corretas e as do assistente são equivocadas, ou, se for o caso, reconhecer o acerto de alguma ponderação do assistente e retificar ou complementar seu laudo. Não basta ao perito judicial simplesmente reafirmar suas conclusões anteriores; ele deve dialogar tecnicamente com o parecer do assistente. A jurisprudência tem sido firme em exigir esse enfrentamento. Por exemplo, o STJ já decidiu que:
“Tendo sido apresentada tempestivamente impugnação total do laudo pericial produzido em juízo, seguida de parecer de assistente técnico da parte, nos termos do art. 477, § 2º, II, do CPC/2015 era dever do perito prestar os devidos esclarecimentos. Olvidar à parte tal direito, constitui cerceamento de defesa e enseja nulidade do processo deste então.[…] (REsp n. 1.944.696/AM, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 27/9/2022, DJe de 3/10/2022.)"
§ 3º Se ainda houver necessidade de esclarecimentos, a parte requererá ao juiz que mande intimar o perito ou o assistente técnico a comparecer à audiência de instrução e julgamento, formulando, desde logo, as perguntas, sob forma de quesitos.
Caso os esclarecimentos escritos do perito judicial não sejam suficientes para dirimir todas as dúvidas ou controvérsias, o CPC prevê a possibilidade de um debate oral.
- Necessidade Persistente de Esclarecimentos: A parte interessada deve demonstrar ao juiz que os esclarecimentos escritos foram insatisfatórios e que o debate oral é imprescindível.
- Requerimento ao Juiz: A iniciativa é da parte.
- Intimação do Perito ou do Assistente Técnico: O juiz pode determinar a oitiva de ambos, ou apenas de um deles, conforme a necessidade. É comum que, se o perito for intimado, o assistente da parte contrária também o seja, para manter o equilíbrio.
- Formulação Prévia de Perguntas (Quesitos): Este é um requisito importante. As perguntas devem ser apresentadas no próprio requerimento de oitiva, sob a forma de quesitos. Isso visa a dar objetividade ao ato, evitar surpresas e permitir que o perito/assistente se prepare para responder. A ausência de formulação prévia pode levar ao indeferimento da oitiva. Sobre a questão, ainda na vigência do CPC/73, cujo art. 435 trazia redação quase idêntica à do CPC/15, a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de ser dever da parte que requerer a intimação do perito para prestar esclarecimentos formular, desde logo, os quesitos que entender pertinentes, sob pena de preclusão:
"[…] Nos termos do artigo 435 do revogado Código de Processo Civil, é dever da parte que pretender esclarecimentos do perito requerer a sua intimação para comparecer em audiência e formular, desde logo, as perguntas a serem feitas." (AgInt no AREsp 1.051.959/RJ, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 20/11/2017, g.n.)
Destaca-se que, neste caso, existindo a divergência e pedido da realização da audiência que se refere o §3º, do artigo 477 do CPC, a não realização da audiência pode levar ao cerceamento de defesa:
“A realização de audiência de instrução e julgamento é necessária quando há divergências significativas entre laudos periciais, para evitar cerceamento de defesa. 2. A negativa de prestação jurisdicional ocorre quando o tribunal não responde a embargos de declaração sobre questões relevantes do laudo pericial. 3. A suspensão do praceamento de imóvel é justificada para evitar dano irreparável quando há discrepâncias nos valores de avaliação." (v.g., AgInt na TutPrv no REsp n. 2.025.271/RJ, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 24/2/2025, DJEN de 28/2/2025.)
§ 4º O perito ou o assistente técnico será intimado por meio eletrônico, com pelo menos 10 (dez) dias de antecedência da audiência. Norma procedimental que visa assegurar tempo hábil para que os especialistas se preparem e compareçam à audiência. A intimação por meio eletrônico é a regra no processo atual.
Implicações Estratégicas do Art. 477:
- Não Subestimar Prazos: A perda do prazo do §1º pode ser fatal para a impugnação.
- Qualidade da Impugnação: Impugnações genéricas são inócuas. A crítica deve ser específica, técnica e bem fundamentada, idealmente ancorada no parecer do assistente.
- Uso Inteligente dos Esclarecimentos: As perguntas para os esclarecimentos (tanto os escritos do §2º quanto os orais do §3º) devem ser cirúrgicas, focando nos pontos de real divergência ou obscuridade.
- Preparação para a Audiência: Se houver oitiva em audiência, o advogado e o assistente técnico devem estar meticulosamente preparados para explorar as contradições ou deficiências do laudo pericial e/ou dos esclarecimentos do perito judicial.
4. Motivos Comuns para Impugnação do Laudo Pericial
A impugnação pode se basear em uma miríade de vícios. Alguns dos mais recorrentes incluem:
-
Vícios Formais:
- Ausência de qualificação técnica do perito para o objeto da perícia.
- Não observância dos requisitos do Art. 473 do CPC (falta de clareza, ausência de indicação do método, respostas incompletas aos quesitos).
- Impedimento ou suspeição do perito não arguida tempestivamente, mas que se revela por elementos do laudo (ex: demonstração de interesse no resultado).
-
Vícios de Conteúdo (Técnicos/Científicos):
- Erro na premissa fática: O perito parte de um fato ou dado incorreto para desenvolver sua análise (ex: utiliza medidas erradas de um terreno).
- Metodologia inadequada ou ultrapassada: Utilização de técnicas não reconhecidas pela comunidade científica, obsoletas ou inaplicáveis ao caso concreto.
- Omissão na análise de elementos relevantes: O perito deixa de considerar documentos, fatos ou circunstâncias cruciais que poderiam alterar suas conclusões (ex: ignora um parecer técnico anterior nos autos).
- Contradições internas: O laudo apresenta afirmações ou conclusões que se contradizem entre si.
- Conclusões não suportadas pela análise: As conclusões do perito não decorrem logicamente dos dados coletados ou da análise desenvolvida; há um salto ilógico.
- Respostas evasivas ou inconclusivas a quesitos essenciais.
- Excesso de escopo: O perito opina sobre matéria jurídica ou sobre fatos que não dependem de conhecimento técnico (Art. 473, §2º).
- Parcialidade ou falta de isenção: Embora o perito seja um auxiliar do juízo, seu laudo pode, em alguns casos, transparecer um viés indevido.
A identificação precisa desses vícios, com o auxílio do assistente técnico, é o primeiro passo para uma impugnação bem-sucedida.
5. O Papel do Juiz na Avaliação da Impugnação e do Conjunto Probatório Técnico
A impugnação, os esclarecimentos e os pareceres dos assistentes são todos direcionados ao juiz, que é o destinatário final da prova (Art. 371 do CPC: "O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento").
O Art. 479 do CPC é fundamental neste ponto: "O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371 , indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito". Essa exigência permanece implícita e decorre do dever de fundamentação das decisões judiciais (Art. 489, §1º, IV, CPC e Art. 93, IX, CF/88).
Portanto, o juiz:
- Não está adstrito ao laudo pericial: Ele pode discordar do perito, mesmo que não haja parecer de assistente técnico contrário, desde que fundamente sua decisão em outros elementos dos autos.
- Deve considerar o parecer do assistente técnico: Se houver um parecer de assistente técnico bem fundamentado apontando falhas no laudo oficial, o juiz não pode simplesmente ignorá-lo. Deve sopesá-lo e, se mantiver a conclusão do perito judicial, explicar por que as críticas do assistente não procedem.
- Pode determinar nova perícia (Art. 480): Se a matéria não estiver suficientemente esclarecida, o juiz pode, de ofício ou a requerimento da parte, determinar a realização de nova perícia, que terá por objeto os mesmos fatos da primeira e visará a corrigir omissão ou inexatidão. Pode também ser realizada por outro perito.
- Deve zelar pelo contraditório: O juiz deve assegurar que o perito responda adequadamente às impugnações e que as partes tenham oportunidade de se manifestar sobre todos os elementos técnicos produzidos.
A jurisprudência do STJ tem reforçado o dever de o magistrado analisar com acuidade os pareceres dos assistentes técnicos, consoante explicado anteriormente. O descarte imotivado de um parecer técnico divergente pode caracterizar cerceamento de defesa e levar à anulação da decisão.
Conclusão: A Dialética Técnica a Serviço da Justiça
A disciplina da impugnação ao laudo pericial, com o protagonismo conferido aos assistentes técnicos e o detalhamento procedimental do artigo 477 do CPC/2015, reflete a maturação do sistema processual civil brasileiro na busca por uma prestação jurisdicional mais qualificada e justa. O legislador reconheceu que a "verdade técnica" em um processo não é monolítica, mas construída dialeticamente, através do embate de teses e antíteses especializadas.
O fortalecimento do contraditório técnico não é um obstáculo à celeridade, mas uma condição para a legitimidade e a qualidade da decisão judicial em casos que demandam conhecimento especializado. Ao advogado, impõe-se o dever de manejar com destreza essas ferramentas, desde a escolha criteriosa do assistente técnico até a formulação precisa das impugnações e quesitos. Ao perito judicial, exige-se não apenas conhecimento, mas também a capacidade de dialogar tecnicamente com as críticas e de fundamentar suas posições com clareza e rigor metodológico. Ao magistrado, cabe a sensível tarefa de ponderar os argumentos técnicos contrapostos, assegurando a paridade de armas e fundamentando sua decisão de forma a convencer não apenas as partes, mas toda a comunidade jurídica, da correção de seu julgamento.
Os desafios, como o custo da contratação de assistentes técnicos para partes hipossuficientes ou a eventual necessidade de múltiplas rodadas de esclarecimentos, persistem. Contudo, o arcabouço normativo fornecido pelo CPC/2015 oferece um caminho robusto para que o confronto de opiniões técnicas não seja um fim em si mesmo, mas um meio eficaz para alcançar decisões mais justas, informadas e, consequentemente, mais próximas da verdade objetiva almejada pelo Direito.
André Luiz Guella
OAB/SC 22.640
Fernanda Salete Guella
OAB/SC 27.534
Chapecó-SC, 10 de julho de 2025.