Patrimônio Rural em Afetação: A "Super Garantia" do Agro e Seus Impactos para o Produtor Rural
Palavras-chave: Patrimônio Rural em Afetação (PRA), Lei do Agro (Lei nº 13.986/2020), Crédito Rural, Garantia Imobiliária, Cédula de Produto Rural (CPR), Cédula Imobiliária Rural (CIR), Segregação Patrimonial, Alienação Fiduciária, Direito Agrário, Produtor Rural.
Introdução: A Revolução do Crédito no Campo
O agronegócio brasileiro, pilar da economia nacional, vive uma constante busca por maior eficiência, produtividade e, crucialmente, acesso a capital. O crédito rural é o combustível que move a safra, financia a tecnologia e viabiliza a expansão. Nesse cenário, a Lei nº 13.986/2020, conhecida como a "Lei do Agro", promoveu uma das mais significativas inovações das últimas décadas na estrutura de garantias do setor: o Patrimônio Rural em Afetação (PRA).
Este instituto jurídico, inspirado em mecanismos de segregação patrimonial já existentes em outros setores, como a incorporação imobiliária, surge com a promessa de ser uma "super garantia". Seu objetivo é claro: reduzir o risco para os credores e, por consequência, baratear e ampliar a oferta de crédito ao produtor rural.
Contudo, a força de sua segurança jurídica traz, na mesma medida, riscos e responsabilidades para o proprietário rural. Este artigo se propõe a dissecar o Patrimônio Rural em Afetação, explicando seu conceito, o processo de constituição, suas vantagens e, principalmente, as desvantagens e cuidados que produtores e seus assessores jurídicos devem ter. Analisaremos a matéria sob a ótica da legislação, da doutrina e da jurisprudência que vem se consolidando desde sua criação.
1. O Que É o Patrimônio Rural em Afetação (PRA)? Uma Análise Conceitual
O Patrimônio Rural em Afetação, disciplinado no Capítulo II da Lei nº 13.986/2020, é um regime que permite ao proprietário de um imóvel rural (pessoa física ou jurídica) "separar" ou "afetar" seu imóvel, ou uma fração dele, para vincular exclusivamente à garantia de uma Cédula de Produto Rural (CPR) ou de uma Cédula Imobiliária Rural (CIR).
A essência do instituto está na segregação patrimonial. Conforme o art. 10 da Lei nº 13.986/2020, os bens e direitos que integram o PRA "não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário".
Art. 10, § 4º, Lei nº 13.986/2020: "O patrimônio rural em afetação não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, da recuperação judicial ou da resolução, por inadimplemento de obrigação, do proprietário de imóvel rural, não integrando a massa concursal nem podendo ser objeto de arrecadação no processo de insolvência."
Em termos práticos, cria-se uma blindagem. A parte do imóvel afetada fica imune a outras dívidas do produtor, sejam elas fiscais (com exceções), trabalhistas, cíveis ou decorrentes de uma recuperação judicial ou falência. Essa separação confere ao credor da CPR ou da CIR uma garantia robusta e de baixo risco, pois o ativo garantidor está isolado e sua execução é simplificada.
2. Fundamentação Jurídica e Princípios Aplicáveis
O PRA não é um instituto isolado, dialogando com diversos princípios e normas do ordenamento jurídico brasileiro.
- Princípio da Função Social da Propriedade (Art. 5º, XXIII, CF/88 e Art. 1.228, § 1º, CC): O PRA pode ser visto como um instrumento que viabiliza a função social da propriedade ao facilitar o acesso ao crédito.
- Princípio da Segurança Jurídica: Este é o pilar do PRA. A clareza das regras de segregação e execução oferece previsibilidade ao credor, atraindo investimentos.
- Alienação Fiduciária (Lei nº 9.514/1997): A execução do PRA em caso de inadimplência segue o rito da consolidação da propriedade previsto para a alienação fiduciária de imóveis, de forma extrajudicial.
3. O Processo de Constituição: Requisitos e Vedações
A constituição do PRA exige um ato formal e voluntário do proprietário perante o Cartório de Registro de Imóveis (CRI). O art. 12 da Lei detalha os documentos necessários, como comprovação de domínio, inscrição no CAR, certidões de regularidade e georreferenciamento.
Além disso, o art. 8º impõe vedações importantes, impedindo a afetação sobre a pequena propriedade rural, áreas de tamanho inferior ao módulo fiscal e o bem de família legal, com exceções.
4. Jurisprudência Recente e Doutrina
Sendo um instituto relativamente novo, a jurisprudência começa a delinear seus contornos práticos.
Os Limites da Impenhorabilidade: O Ativo versus o Recurso Financeiro. Em decisão relevante (TRT-4, Processo nº 0020276-72.2022.5.04.0801), firmou-se o entendimento de que a impenhorabilidade prevista na Lei do Agro se aplica exclusivamente ao bem imóvel afetado, e não se estende aos recursos financeiros recebidos pelo produtor. O tribunal foi claro: "não há falar em impenhorabilidade dos valores recebidos em razão da cédula de produto rural". Esta decisão estabelece um limite claro à "blindagem" do PRA.
A Flexibilização dos Requisitos Formais. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP, Processo nº 1004515-36.2023.8.26.0073) adotou uma postura pragmática ao decidir que o rigor formal (exigência de certidões negativas) não pode se sobrepor ao espírito da lei de fomentar a atividade econômica. A análise deve ser material, e não puramente formal, quando não se vislumbra prejuízo a terceiros.
5. O que o Produtor Rural Precisa Saber
| Aspecto | Descrição |
|---|---|
| Vantagem Principal | Acesso a crédito com juros mais baixos e melhores condições, pois a garantia é muito segura para o credor. A área afetada fica protegida de outras dívidas. |
| Desvantagem e Risco Principal | Proibição de vender ou dar em garantia a área afetada. Em caso de não pagamento, a perda do imóvel é rápida e ocorre fora da Justiça, via cartório. |
Em resumo, é uma troca: você obtém um crédito melhor, mas oferece em troca uma garantia poderosíssima, com alto risco de perda do bem em caso de inadimplência.
6. Breve Olhar ao Direito Comparado
O conceito de segregação de ativos para fins de garantia não é uma exclusividade brasileira. No sistema da common law (EUA, Reino Unido), o instituto do trust permite a criação de um patrimônio autônomo. Na Alemanha, a hipoteca (Grundschuld) possui eficácia semelhante, um objetivo que o legislador brasileiro buscou replicar com a força executiva do PRA.
Conclusão: Uma Ferramenta Poderosa que Exige Cautela
O Patrimônio Rural em Afetação representa, inegavelmente, um marco na modernização do financiamento do agronegócio. Ao criar uma garantia de alta performance, a Lei nº 13.986/2020 alinha o Brasil às melhores práticas internacionais de mitigação de risco de crédito.
Contudo, ele é uma faca de dois gumes. Para o credor, é a segurança máxima. Para o produtor rural, é uma ferramenta estratégica que pode baratear seu custo de capital, mas que carrega consigo o risco iminente de uma rápida e implacável excussão patrimonial. A perda de um ativo produtivo, por via extrajudicial, pode ser fatal para a continuidade da atividade agrícola.
Recomendações Práticas:
- Para o Produtor Rural: Antes de constituir um PRA, é indispensável uma análise profunda de seu fluxo de caixa. A assessoria conjunta de um advogado especialista e de um consultor financeiro é crucial.
- Para o Advogado: É seu dever explicar, de forma inequívoca, os riscos envolvidos, especialmente a celeridade e a natureza extrajudicial da perda do bem.
O futuro do PRA dependerá do equilíbrio que a jurisprudência encontrará entre a proteção ao crédito e a salvaguarda dos direitos mínimos do devedor, sempre sob o prisma da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana.
Referências
- BRASIL. Lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020.
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
- BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.
- BRASIL. Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.
André Luiz Guella
OAB/SC 22.640
Fernanda Salete Guella
OAB/SC 27.534
Chapecó-SC, 17 de junho de 2025.