Responsabilidade de Construtoras por Danos a Vizinhos


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A Responsabilidade Civil Objetiva de Construtoras por Danos a Imóveis Vizinhos

Introdução

O cenário urbano brasileiro, marcado por uma crescente verticalização e adensamento populacional, torna cada vez mais frequente a convivência, por vezes conflituosa, entre o canteiro de obras e a moradia consolidada. A imagem de um novo edifício erguendo-se ao lado de residências preexistentes é um retrato do desenvolvimento, mas também o epicentro de uma complexa tensão jurídica. De um lado, o direito de propriedade e a liberdade de construir; do outro, o direito ao sossego, à segurança e à integridade patrimonial dos vizinhos. Quando a atividade construtiva, mesmo que lícita e autorizada, projeta seus efeitos para além dos limites do terreno, causando rachaduras, recalques de solo, ruído excessivo ou, em casos extremos, abalos estruturais, emerge uma questão central do direito civil: quem responde por esses danos e sob qual fundamento? Este artigo se propõe a dissecar os mecanismos legais que governam a responsabilidade civil de construtoras e incorporadoras por danos causados a imóveis vizinhos. A análise demonstrará que o ordenamento jurídico brasileiro, em uma clara opção pela proteção da vítima, consolidou um regime de responsabilidade objetiva, que prescinde da demonstração de culpa do construtor. O objetivo é fornecer um panorama robusto e atualizado, útil tanto para o profissional do direito quanto para o leigo interessado em compreender os limites entre a muralha que sobe e a fissura que ela pode abrir na propriedade alheia.

O Alicerce da Responsabilidade: O Direito de Vizinhança no Código Civil

O direito de propriedade, embora garantido constitucionalmente, não é absoluto. Ele encontra seus limites nos direitos de terceiros e na sua função social, conforme preceitua o artigo 5º, incisos XXII (“é garantido o direito de propriedade”) e XXIII (“a propriedade atenderá a sua função social”), da Constituição Federal de 1988. No plano infraconstitucional, o mais emblemático desses limites é o direito de vizinhança, um conjunto de normas que visa harmonizar a coexistência entre proprietários de prédios contíguos.

Análise do Uso Anormal da Propriedade

A pedra angular do direito de vizinhança reside no artigo 1.277 do Código Civil (CC), que dispõe:

“Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”.

Este dispositivo consagra uma proteção ao trinômio existencial do morador:

  • Segurança refere-se à solidez e estabilidade da edificação, protegendo-a de riscos estruturais;
  • Sossego tutela a paz e a tranquilidade, coibindo ruídos e vibrações excessivas;
  • Saúde resguarda os habitantes contra agentes nocivos, como poeira, gases e outros poluentes.

A violação de qualquer um desses bens jurídicos por uma obra vizinha configura o uso anormal da propriedade e autoriza o vizinho prejudicado a buscar medidas para cessar a perturbação.

O Direito de Construir e Suas Limitações

O direito de construir, por sua vez, é expressamente condicionado por essas regras. O artigo 1.299 do CC estabelece que o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, fazendo a ressalva crucial: “salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”. A própria lei, ao conceder o direito, impõe-lhe o limite. De forma ainda mais específica, o artigo 1.300 proíbe que o proprietário construa de maneira que seu prédio despeje águas diretamente sobre o imóvel vizinho, uma regra que, por analogia, se estende ao despejo de concreto, terra e outros detritos de obra.

A Norma Chave: A Responsabilidade por Obras e o Dever de Cautela

O dispositivo mais contundente para a responsabilização por danos de construção é o artigo 1.311 do Código Civil. Seu caput proíbe a execução de qualquer obra ou serviço que possa provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho:

“Art. 1.311. Não é permitida a execução de qualquer obra ou serviço suscetível de provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho, senão após haverem sido feitas as obras acautelatórias.

Contudo, a chave para a compreensão do regime de responsabilidade está em seu parágrafo único:

“Art. 1.311. Parágrafo único. O proprietário do prédio vizinho tem direito a ressarcimento pelos prejuízos que sofrer, não obstante haverem sido realizadas as obras acautelatórias”.

Este parágrafo é de uma clareza solar ao estabelecer um regime de responsabilidade que independe da conduta do construtor. Mesmo que todas as medidas de precaução tenham sido tomadas, se o dano ainda assim ocorrer, o dever de indenizar persiste. A lei não condiciona a reparação à prova de que o construtor agiu com negligência, imprudência ou imperícia. Enquanto a responsabilidade civil geral, prevista nos artigos 186 e 927 do CC, exige a comprovação de culpa, o artigo 1.311 cria uma hipótese de responsabilidade legal especial e mais rigorosa, fundamentada no simples nexo de causalidade entre a obra e o dano. Essa arquitetura legal revela uma dupla funcionalidade do direito de vizinhança. Ele possui uma vertente profilática, que permite ao vizinho agir preventivamente para impedir o dano ou sua continuação (pela via do art. 1.277 ou exigindo caução por dano iminente, conforme o art. 1.280). E possui uma vertente reparatória, que garante a indenização integral dos prejuízos já consumados (pela via do art. 1.311, parágrafo único). O vizinho não precisa esperar que sua casa rache para agir; ele pode buscar cessar a vibração excessiva que precede a rachadura. Se, contudo, o dano ocorrer, o caminho para a reparação está claramente traçado.

A Natureza da Obrigação de Indenizar: A Teoria da Responsabilidade Objetiva

A interpretação sistemática dos dispositivos do direito de vizinhança, especialmente do artigo 1.311 do CC, levou a doutrina e a jurisprudência a consolidarem o entendimento de que a responsabilidade por danos de construção é objetiva. Isso significa que a obrigação de indenizar não se baseia na culpa do agente, mas sim no risco inerente à atividade de construir. Essa tese foi definitivamente chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em decisão paradigmática no Recurso Especial nº 2.125.459/SP, a Terceira Turma, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, afirmou que, em matéria de direito de vizinhança, a responsabilidade civil é objetiva, bastando ao lesado a comprovação da conduta, do dano e do nexo de causalidade entre eles:

[...]6. De acordo com o art. 1.277 do CC/2002, "o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha".
7. No sistema jurídico nacional, à luz do art. 1.277 do CC/2002, vigora nas relações de vizinhança o princípio da responsabilidade objetiva, emergindo o dever de indenizar ou compensar desde que provados a conduta, o dano e o nexo causal.
8. Na hipótese dos autos, não merece reforma o acórdão recorrido, pois, conforme a fundamentação exposta, a responsabilidade decorrente do direito de vizinhança possui natureza objetiva, sendo desnecessária, portanto, a prova da culpa.
9. Recurso especial conhecido em parte e, nesta extensão, não provido.
(REsp n. 2.125.459/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/4/2024, DJe de 10/4/2024.)

Outros tribunais, como o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o de São Paulo, aplicam consistentemente o mesmo entendimento, reconhecendo o dever de indenizar diante da constatação pericial do nexo entre a obra e os danos no imóvel vizinho. A consequência prática dessa consolidação é profunda: o foco do litígio judicial se desloca da discussão sobre a culpa do construtor para a comprovação do nexo de causalidade. O debate deixa de ser sobre "se o construtor foi negligente" e passa a ser sobre "se foi a obra que causou as rachaduras". A defesa do construtor, via de regra, se concentrará em tentar quebrar esse elo causal, argumentando que os danos são preexistentes, decorrem de falhas estruturais do próprio imóvel da vítima ou foram causados por outros fatores. Isso eleva a prova pericial técnica, realizada por um engenheiro, à condição de elemento probatório mais crucial do processo, tornando-a o verdadeiro campo de batalha da disputa judicial.

A Solidariedade Passiva entre o Dono da Obra e o Construtor

Uma vez estabelecida a obrigação de indenizar, surge a questão de quem deve arcar com o pagamento. Em projetos imobiliários, é comum a existência de múltiplas figuras, como a incorporadora ou desenvolvedora (dona da obra) e a empresa de engenharia contratada para a execução (construtora). Para o vizinho lesado, a lei oferece uma resposta protetiva: a responsabilidade é solidária. Isso significa que a vítima pode exigir a reparação integral de qualquer um dos envolvidos (dono da obra ou construtor) ou de ambos simultaneamente, conforme o artigo 942 do Código Civil. A relação contratual de empreitada firmada entre o dono da obra e o construtor é, para o vizinho prejudicado, res inter alios acta — um ato que não lhe diz respeito nem pode lhe prejudicar. Ambos são considerados, perante a vítima, como causadores do dano. Essa solidariedade é um instrumento de imensa importância prática. O vizinho pode direcionar sua ação contra a parte que apresentar maior solidez econômica para arcar com a indenização, que frequentemente é a incorporadora ou a Sociedade de Propósito Específico (SPE) criada para o empreendimento. Observa-se aqui uma interessante dinâmica entre o direito societário e o direito da responsabilidade civil. As SPEs são frequentemente utilizadas por incorporadoras como uma forma de isolar os riscos financeiros de cada projeto. No entanto, a doutrina da responsabilidade solidária por danos a terceiros (vizinhos) efetivamente "perfura" essa blindagem patrimonial para fins de reparação do dano, ao permitir que a ação seja movida também contra a construtora ou a própria incorporadora, caso esta se confunda com a SPE. Nesse conflito, o princípio da reparação integral da vítima (próprio da responsabilidade civil) prevalece sobre as estratégias de limitação de risco (próprias do direito empresarial).

O Vizinho como Consumidor por Equiparação (Bystander)

Uma tese jurídica mais recente e sofisticada tem ampliado ainda mais o espectro de proteção do vizinho lesado: a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) a esses conflitos. A porta de entrada para essa aplicação é a figura do consumidor por equiparação, também conhecido como bystander, previsto no artigo 17 do CDC: "Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". A construção do raciocínio é lógica e sequencial:

  1. Primeiro, a atividade de construção civil com fins comerciais é inegavelmente uma prestação de serviço no mercado de consumo.
  2. Segundo, quando essa atividade causa danos a um terceiro (o vizinho), que não faz parte da relação contratual direta, ocorre um "acidente de consumo", tecnicamente denominado "fato do serviço".
  3. Terceiro, o serviço se mostra defeituoso por não fornecer a segurança que dele se espera, atingindo a incolumidade física ou patrimonial de quem está próximo. O vizinho, como vítima desse evento danoso, é legalmente equiparado a consumidor, atraindo para si todo o microssistema protetivo do CDC.

As consequências práticas dessa equiparação são extremamente vantajosas para a vítima:

  • Responsabilidade Objetiva Reforçada: O artigo 14 do CDC estabelece uma base autônoma para a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, que responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços.
  • Solidariedade Ampliada: O CDC reforça a responsabilidade solidária de todos os integrantes da cadeia de fornecimento (incorporadora, construtora, projetistas etc.), conforme seus artigos 7º, parágrafo único, e 25, § 1º.
  • Inversão do Ônus da Prova: Talvez a ferramenta mais poderosa seja a possibilidade de o juiz inverter o ônus da prova em favor do consumidor (o vizinho), quando suas alegações forem verossímeis ou quando ele for hipossuficiente (art. 6º, VIII, do CDC). Em uma disputa que depende de prova técnica complexa, transferir ao construtor (que detém todas as informações e documentos do projeto) o dever de provar que sua obra não causou o dano é uma vantagem processual decisiva.

O STJ, por sua vez, tem uma jurisprudência consolidada que distingue o "fato do serviço" (acidente de consumo, que atrai o art. 17) do "vício do serviço" (mera inadequação de qualidade, que não o atrai). Os danos estruturais a um vizinho claramente se enquadram na primeira categoria, legitimando a aplicação do CDC. Destaca-se que a inversão do ônus da prova nos casos de acidente de consumo (fato do produto ou serviço) é considerado pela jurisprudência como ope legis, isto é, da própria lei, com fundamento nos parágrafos 3º dos artigos 12 e 13 do Código de Defesa do Consumidor:

[…] 4. O fornecedor de serviços somente se exime de responsabilidade quando comprovar inexistência de defeito ou culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, nos termos do art. 14, § 3º, do CDC, com inversão do ônus probatório ope legis.
(TJSC, Apelação n. 5000622-66.2022.8.24.0167, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Giancarlo Bremer Nones, Terceira Câmara Especial de Enfrentamento de Acervos, j. 01-04-2025).

Isto implica que o Consumidor por equiparação não precisa do requisito da verossimilhança das suas alegações nem da hipossuficiência. Havendo um acidente ou dano e nexo de causalidade deste com a obra, há a inversão do ônus da prova por determinação da lei, e não pela avaliação do Juiz da causa. A invocação do CDC não é mera repetição do que já prevê o Código Civil. Trata-se de uma convergência estratégica de regimes jurídicos, em um fenômeno que a doutrina chama de "diálogo das fontes". O Código Civil estabelece o direito material à reparação, e o Código de Defesa do Consumidor fornece ferramentas processuais mais eficazes para a concretização desse direito, materializando o princípio constitucional de proteção ao vulnerável.

Conclusão

A análise da legislação e da jurisprudência brasileiras demonstra a construção de um sólido sistema de proteção ao proprietário ou possuidor de imóvel atingido pelos efeitos nocivos de uma obra vizinha. A responsabilidade civil dos construtores e donos da obra é, por força de lei e pela interpretação dos tribunais superiores, objetiva e solidária. Fundamenta-se não na ilicitude do ato de construir, mas na lesividade do fato da construção, dispensando a vítima do ônus de provar a culpa do agente. Essa proteção é ainda amplificada pela possibilidade de enquadrar o vizinho lesado como consumidor por equiparação (bystander), o que lhe franqueia as poderosas ferramentas do Código de Defesa do Consumidor, notadamente a inversão do ônus da prova. Apesar da robustez do direito material, o desafio prático para a efetivação desse direito não pode ser subestimado. A natureza objetiva da responsabilidade desloca o epicentro da disputa para o nexo de causalidade, tornando a prova pericial técnica o elemento decisivo do processo. O alto custo e a complexidade dessa prova podem representar uma barreira significativa de acesso à justiça, especialmente para proprietários de menor poder aquisitivo, que podem se ver intimidados a buscar a reparação a que têm direito. Diante desse cenário, a tendência e a recomendação mais salutar apontam para a cultura da prevenção. A realização da Vistoria Cautelar de Vizinhança — um laudo técnico detalhado que documenta o estado de todos os imóveis no entorno antes do início de uma construção — emerge como um instrumento fundamental. Para os construtores, é uma ferramenta de gestão de risco que os protege de reclamações infundadas. Para os vizinhos, é uma garantia de que qualquer dano futuro será facilmente identificado e atribuído. A disseminação dessa prática, seja por iniciativa do próprio mercado ou, idealmente, como requisito para a concessão de alvarás para obras de maior porte, representa o caminho mais inteligente para mitigar conflitos, reduzir a litigiosidade e garantir que o desenvolvimento urbano ocorra de forma mais harmônica e justa.


André Luiz Guella
OAB/SC 22.640

Fernanda Salete Guella
OAB/SC 27.534

Chapecó-SC, 07 de agosto de 2025.