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Loteamento Irregular: De Quem é a Responsabilidade?


Palavras-chave: loteamento irregular, responsabilidade do município, responsabilidade do loteador, direito imobiliário, direito urbanístico, Lei 6.766/79, Código de Defesa do Consumidor, dano moral, reparação de danos, Guella Advocacia


Introdução

O fenômeno dos loteamentos irregulares e clandestinos representa uma patologia crônica do desenvolvimento urbano brasileiro, cujas consequências se manifestam em uma tríade de impactos negativos que desafiam o ordenamento jurídico e a administração pública.

No plano social, a comercialização de lotes à margem da lei frustra o direito fundamental à moradia digna, previsto no artigo 6º da Constituição Federal, e fomenta a criação de bolsões de exclusão socioespacial, desprovidos de infraestrutura básica e serviços públicos essenciais.

No âmbito ambiental, a ocupação desordenada do solo frequentemente resulta na degradação de ecossistemas frágeis, na contaminação de recursos hídricos e na ocupação de áreas de risco geológico, intensificando a vulnerabilidade de populações e ecossistemas.

Por fim, na esfera econômica, a irregularidade impõe um pesado ônus ao erário, que é chamado a arcar com os custos de uma regularização que deveria ter sido promovida pelo empreendedor, ao mesmo tempo que gera profunda insegurança jurídica, minando a confiança nas relações imobiliárias.

A presente análise parte da premissa de que a desordem urbana não é um problema a ser tratado de forma isolada, mas uma questão sistêmica que demanda uma resposta coordenada e robusta do Direito.

A tese central a ser defendida neste artigo é que o ordenamento jurídico brasileiro, por meio de uma notável confluência de microssistemas legais — notadamente o consumerista, o urbanístico e o civil —, construiu uma sofisticada e densa rede de proteção ao adquirente de boa-fé e à coletividade.

Esta teia de responsabilidades transcende a figura isolada do loteador para alcançar, de forma solidária, o Poder Público omisso em seu dever de fiscalização, os sócios e administradores que se utilizam do véu da pessoa jurídica como anteparo para a prática de fraudes, e quaisquer outros agentes que, direta ou indiretamente, tenham se beneficiado do empreendimento ilícito.

A estrutura do trabalho se desenvolverá em quatro partes: a primeira abordará a responsabilidade do empreendedor e de seus associados sob a ótica da proteção ao consumidor; a segunda se debruçará sobre a responsabilidade do Poder Público Municipal; a terceira analisará a extensão da reparação dos danos sofridos pelo adquirente; e a quarta tratará das complexas questões prescricionais que envolvem a matéria. Ao final, será apresentada uma seção explicativa destinada ao público leigo e uma conclusão com reflexões críticas e recomendações práticas.

Parte I: A Responsabilidade do Empreendedor e a Proteção do Consumidor Adquirente

A primeira e mais evidente frente de responsabilização em um loteamento irregular recai sobre o empreendedor. Contudo, a legislação brasileira, ciente das artimanhas frequentemente utilizadas para diluir ou ocultar essa responsabilidade, estabeleceu múltiplos mecanismos para garantir que a reparação ao consumidor lesado seja efetiva, alcançando não apenas a pessoa jurídica que figura no contrato, mas toda a cadeia de envolvidos no ilícito.

O Loteador como Fornecedor: A Incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC)

A relação jurídica estabelecida entre o adquirente de um lote e o empreendedor que o comercializa é, inequivocamente, uma relação de consumo, nos termos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). O lote de terreno, urbanizado ou em vias de urbanização, é o "produto", e o loteador, a empresa imobiliária ou qualquer um que desenvolva essa atividade com habitualidade, é o "fornecedor". Essa caracterização é de suma importância, pois atrai a aplicação de um microssistema protetivo concebido para reequilibrar a balança em favor da parte vulnerável da relação.

A consequência mais direta dessa incidência é a aplicação do regime da responsabilidade objetiva, previsto no artigo 14 do CDC. Isso significa que a responsabilidade do loteador por falhas na prestação do serviço — como o atraso na entrega, a não execução das obras de infraestrutura prometidas ou a irregularidade documental do empreendimento — independe da comprovação de sua culpa. Para que o dever de indenizar se configure, basta ao consumidor demonstrar o dano sofrido e o nexo de causalidade com a conduta do fornecedor.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

No caso de parcelamentos do solo ilícitos, a responsabilidade fica ainda mais evidente. O artigo 37 do CDC veda a publicidade enganosa, e o artigo 50, inciso III, da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766/1979) criminaliza tal ato.

Art. 50. Constitui crime contra a Administração Pública.
III - fazer ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo.

Essa prática, além de viciar o consentimento do consumidor no momento da compra, constitui um ilícito que, por si só, gera o dever de indenizar e serve como um dos pilares para a configuração do dano moral, tanto individual quanto coletivo, como se verá adiante.

A Expansão da Responsabilidade: Atingindo Grupos Econômicos e Terceiros Beneficiários

Cientes de que a pessoa jurídica do loteador pode ser uma mera "casca" sem patrimônio, utilizada para concentrar os riscos do negócio, o legislador criou ferramentas para transpor essa barreira formal. O artigo 47 da Lei nº 6.766/1979 é, nesse sentido, um dispositivo de crucial importância estratégica para o credor. Ele estabelece que: "Se o loteador integrar grupo econômico ou financeiro, qualquer pessoa física ou jurídica desse grupo, beneficiária de qualquer forma do loteamento ou desmembramento irregular, será solidariamente responsável pelos prejuízos por ele causados aos compradores de lotes e ao Poder Público."

Este artigo permite que a pretensão executória se volte diretamente contra outras empresas do mesmo grupo ou contra pessoas físicas — sócios, administradores ou mesmo terceiros — que, embora não figurem formalmente como loteadores, tenham auferido algum tipo de vantagem com o negócio ilícito. A norma visa combater a blindagem patrimonial e alcançar o verdadeiro centro decisório e econômico por trás do empreendimento. O artigo 47 legitima a inclusão de todos os que se beneficiaram com o ilícito, tornando irrelevantes as manobras societárias, como a transferência da empresa para "testas de ferro", pois a responsabilidade decorre do benefício obtido com a fraude, e não da titularidade formal da empresa.

A Desconsideração da Personalidade Jurídica: O Véu Corporativo a Serviço da Fraude

Quando a fraude se estrutura por meio do abuso da pessoa jurídica, o ordenamento oferece um remédio ainda mais incisivo: a desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard doctrine. A petição inicial fundamenta esse pedido tanto no CDC quanto na Lei de Loteamentos, mas é crucial distinguir as duas principais teorias que regem o instituto no Brasil, pois elas possuem requisitos e alcances distintos.

A Teoria Maior, adotada como regra geral pelo artigo 50 do Código Civil, é mais restritiva. Ela exige a comprovação do "abuso da personalidade jurídica", que se caracteriza pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. O desvio de finalidade ocorre quando a pessoa jurídica é utilizada para propósitos distintos daqueles para os quais foi criada, com a intenção de lesar credores ou praticar atos ilícitos. Por exemplo, no caso de a empresa ter sido transferida para "testas de ferro" e registrada em um endereço fictício, é um forte indício de desvio de finalidade, configurando uma manobra para fraudar consumidores e se eximir de responsabilidades. A confusão patrimonial, por sua vez, se manifesta pela inexistência de separação fática entre o patrimônio da sociedade e o de seus sócios. Conforme jurisprudência consolidada do STJ, a mera dissolução irregular da empresa ou a ausência de bens não são, por si sós, suficientes para aplicar a Teoria Maior; é necessária a prova do ato fraudulento ou abusivo.

Por outro lado, a Teoria Menor, prevista especificamente para as relações de consumo no artigo 28, § 5º, do CDC, é substancialmente mais benéfica ao consumidor. Este dispositivo autoriza a desconsideração "sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". Sob a ótica desta teoria, não se exige a prova de fraude, abuso ou confusão patrimonial. Basta a demonstração de que a pessoa jurídica é insolvente ou não possui bens suficientes para reparar o dano, ou seja, a mera existência de um "obstáculo" fático ao ressarcimento já legitima que se atinja o patrimônio dos sócios. A lógica subjacente é a de que o risco da atividade empresarial deve ser suportado pelo empreendedor, e não transferido ao consumidor. O STJ possui jurisprudência pacífica sobre a autonomia e aplicabilidade da Teoria Menor nas relações consumeristas, independentemente dos requisitos da Teoria Maior.

A distinção entre as teorias é de fundamental importância estratégica. Enquanto a Teoria Maior exige um ônus probatório mais elevado do credor (provar a fraude), a Teoria Menor facilita a reparação, exigindo apenas a prova do prejuízo e da insolvência do fornecedor. No entanto, é preciso notar uma limitação importante, também delineada pelo STJ: a Teoria Menor, por seu caráter excepcional e por se basear no risco do negócio, aplica-se para atingir o patrimônio dos sócios, mas não se estende automaticamente a administradores não-sócios. Para que um gestor que não integra o quadro societário seja responsabilizado pessoalmente, é necessário recorrer à Teoria Maior, comprovando sua participação direta no ato abusivo ou fraudulento.

A seguir, uma tabela comparativa para elucidar as diferenças:

Critério Teoria Maior (Art. 50, Código Civil) Teoria Menor (Art. 28, § 5º, CDC)
Fundamento Abuso da personalidade jurídica (fraude). Obstáculo ao ressarcimento do consumidor (risco do negócio).
Requisitos Comprovação de: Desvio de finalidade OU Confusão patrimonial. Comprovação de: Inadimplemento e ausência de bens da PJ (insolvência) que impeçam o ressarcimento.
Ônus da Prova Do credor/consumidor, que deve provar a fraude ou a confusão. Do credor/consumidor, que deve provar apenas o "obstáculo" ao ressarcimento.
Alcance Atinge sócios e administradores que contribuíram para o ato abusivo. Atinge os sócios. O STJ tem entendimento restritivo quanto a atingir administradores não-sócios com base nesta teoria.

A força da pretensão do consumidor, portanto, não reside em uma única norma, mas na articulação sinérgica desses diferentes microssistemas. O advogado do adquirente lesado deve construir sua argumentação de forma multifacetada: invocar a responsabilidade objetiva e a Teoria Menor do CDC para facilitar a reparação; utilizar o artigo 47 da Lei 6.766/79 para expandir o polo passivo a todos os beneficiários da fraude; e, havendo provas de abuso, fundamentar-se também na Teoria Maior do Código Civil para solidificar o pedido de desconsideração, especialmente contra administradores não-sócios.

Parte II: A Responsabilidade do Poder Público Municipal

A responsabilidade pela desordem urbana gerada por um loteamento irregular não se esgota na figura do empreendedor. O Poder Público Municipal, que detém o monopólio constitucional do controle sobre o uso e a ocupação do solo urbano, emerge como um ator central, cuja omissão gera o dever de reparar os danos causados aos adquirentes e à coletividade.

O Fundamento Constitucional e Doutrinário: O Poder-Dever de Polícia Urbanístico

A Constituição Federal de 1988 foi inequívoca ao delinear as competências municipais em matéria urbanística. O artigo 30, inciso VIII, atribui ao Município a competência para "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano". O artigo 182, por sua vez, estabelece que a política de desenvolvimento urbano será "executada pelo Poder Público municipal". Essa competência não constitui uma mera faculdade, mas um poder-dever. Este é exercido por meio do que se convencionou chamar de poder de polícia urbanístico, que é a atividade da administração pública de condicionar e fiscalizar o exercício de direitos individuais (como o de propriedade e o de construir) em prol do interesse coletivo. A omissão do administrador público em exercer esse poder de polícia, ou seja, em fiscalizar ativamente e coibir as ilegalidades urbanísticas, configura uma falha no serviço que acarreta a responsabilidade civil do Estado.

A Responsabilidade por Omissão na Lei de Parcelamento do Solo (Art. 40, Lei nº 6.766/79)

O arcabouço legal dessa responsabilidade é solidificado pelo artigo 40 da Lei nº 6.766/1979. O dispositivo afirma que a Prefeitura Municipal "poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado [...] para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes". A aparente discricionariedade contida no verbo "poderá" foi objeto de intensa análise jurisprudencial, culminando em uma interpretação consolidada e pacífica do Superior Tribunal de Justiça. O STJ, em inúmeros precedentes, como o REsp 1.170.929/SP, firmou o entendimento de que a atividade municipal de fiscalização de loteamentos é vinculada, e não discricionária. Isso significa que, diante da constatação de uma irregularidade, o Município não tem a opção de agir ou não; ele tem o dever de atuar para sanar a ilegalidade e proteger os cidadãos. A omissão culposa do ente municipal em impedir o dano urbanístico e ambiental atrai, de forma inafastável, sua responsabilidade:

[...]
3. É pacífico o entendimento desta Corte Superior de que o Município tem o poder-dever de agir para fiscalizar e regularizar loteamento irregular, pois é o responsável pelo parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, atividade essa que é vinculada, e não discricionária.
[...]
(REsp n. 1.170.929/SP, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 20/5/2010, DJe de 27/5/2010.)

A natureza dessa responsabilidade é um ponto que merece destaque. A jurisprudência do STJ a qualifica como solidária, mas com um benefício de ordem, o que na prática a torna uma responsabilidade subsidiária na execução. Em outras palavras, o Município responde solidariamente com o loteador perante o lesado, que pode acionar ambos. Contudo, no momento da execução, o patrimônio do loteador deve ser buscado primeiro. Apenas se o loteador for insolvente ou não possuir bens para garantir a reparação é que o patrimônio público será efetivamente executado. Ao Município, obviamente, resta o direito de regresso contra o loteador, embora, em muitos casos de fraude, essa via se mostre inócua pela ausência de patrimônio do devedor principal.

Parte III: A Reparação Integral dos Danos ao Adquirente de Boa-Fé

Uma vez estabelecida a teia de responsabilidades, a análise se volta para a extensão da reparação devida ao consumidor lesado. A busca pela reparação integral (restitutio in integrum) abrange não apenas os danos materiais diretos, mas também os lucros que se deixou de auferir e os abalos morais decorrentes da fraude e da frustração do projeto de vida.

Danos Materiais e a Controvérsia dos Lucros Cessantes

A petição inicial que serve de guia para este estudo pleiteia, a título de lucros cessantes, uma indenização pela não fruição do imóvel desde a data prevista para a entrega. O pedido se ampara em precedentes mais antigos do STJ (como o REsp 214.668/SP e o AgRg no REsp 1.202.506/RJ), que consolidaram a tese da presunção de prejuízo em casos de atraso na entrega de imóvel, entendendo que a simples privação do uso do bem já seria suficiente para gerar o dever de indenizar o equivalente a um aluguel mensal:

CIVIL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. PROCEDÊNCIA. IMÓVEL. LUCROS CESSANTES. OCORRÊNCIA.
I - Demonstrada a ilegalidade da privação da posse de imóvel, presume-se a ocorrência de lucros cessantes em favor do seu proprietário, correspondentes aos aluguéis que deixou de auferir no período.
II - Sendo fato extintivo do direito do autor, caberia ao réu provar a existência de circunstância que impediria a locação do bem por seu proprietário.
[...]
(REsp n. 214.668/SP, relator Ministro Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 19/9/2006, DJ de 23/10/2006, p. 294.)

Contudo, é imperativo destacar que a jurisprudência do STJ evoluiu significativamente nos últimos anos, refinando e restringindo essa tese. Atualmente, o Tribunal Superior faz duas distinções cruciais que impactam diretamente a viabilidade do pedido formulado na petição:

  • Rescisão Contratual vs. Manutenção do Contrato: O STJ passou a entender que a presunção de lucros cessantes só se aplica quando o comprador, apesar do atraso, opta por manter o contrato e exigir o seu cumprimento forçado. Nesse cenário, ele efetivamente será privado do uso do bem que um dia receberá. Contudo, se o comprador opta pela rescisão do contrato, sua pretensão é extinguir o vínculo jurídico e retornar ao estado anterior (status quo ante). A consequência lógica da rescisão é a devolução integral de todos os valores pagos, com correção monetária e juros (conforme a Súmula 543/STJ), mas não o recebimento de aluguéis por um imóvel que ele jamais terá. A pretensão resolutória é, portanto, incompatível com a indenização por lucros cessantes decorrentes da fruição do bem.
  • Lote Não Edificado vs. Imóvel Pronto: A segunda distinção, ainda mais pertinente ao caso de loteamentos, refere-se à natureza do bem. A presunção de lucros cessantes foi construída para casos de imóveis prontos (apartamentos, casas), cuja destinação para locação é uma possibilidade concreta e imediata. Para lotes de terreno não edificados, o STJ entende que os lucros cessantes não são presumidos. A simples privação de um lote vago não gera, por si só, uma perda de renda automática. Nesses casos, o prejuízo deve ser efetivamente comprovado pelo adquirente, que precisará demonstrar, por exemplo, que tinha um projeto concreto de construção para locação que foi frustrado pelo atraso na entrega da infraestrutura do loteamento.

O Dano Moral: Da Frustração Individual à Lesão Coletiva

O dano decorrente da aquisição de um lote em empreendimento irregular transcende a esfera puramente patrimonial. Há uma clara lesão a direitos da personalidade do adquirente e a valores fundamentais da coletividade.

O dano moral individual, nesses casos, é frequentemente considerado in re ipsa, ou seja, presumido a partir da própria ocorrência do fato. O atraso substancial na entrega de um imóvel, especialmente quando este se destina à moradia e é fruto de uma fraude deliberada, ultrapassa em muito o mero dissabor ou aborrecimento cotidiano. A conduta ilícita do loteador atinge o planejamento de vida do consumidor, frustra a legítima expectativa de construir um lar (o "sonho da casa própria") e o submete a um sentimento de angústia e impotência por ter sido enganado. Essa violação da dignidade e da tranquilidade psíquica configura dano moral passível de indenização, conforme reiterada jurisprudência.

Além da reparação individual, a conduta de comercializar em massa um loteamento irregular atinge um universo difuso de consumidores e agride valores caros a toda a sociedade, como a boa-fé objetiva nas relações de consumo, a proteção ao meio ambiente e a ordem urbanística. Nesses casos, o STJ tem reconhecido a ocorrência do dano moral coletivo. Este não se confunde com a soma dos danos individuais; ele representa a repulsa da sociedade a uma conduta antijurídica intolerável. A indenização, nesse caso, não é paga às vítimas individuais, mas revertida a um fundo de proteção de direitos difusos (como o Fundo de Defesa de Direitos Difusos), e possui uma dupla função: punitiva, para sancionar o ofensor de forma exemplar, e pedagógica, para desestimular a reiteração da prática lesiva no mercado.

Conclusão

A análise do regime de responsabilidades decorrente de loteamentos irregulares no Brasil revela um arcabouço jurídico sofisticado e protetivo, que se afasta de soluções simplistas para abraçar a complexidade do problema. A tese da responsabilidade compartilhada, solidificada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é a pedra angular desse sistema. Ela reconhece que a fraude urbanística é um ilícito multifacetado, cujos danos só podem ser integralmente reparados se todos os elos da cadeia de responsabilidade forem alcançados: o empreendedor que obtém o lucro, os sócios e administradores que se valem da pessoa jurídica como escudo, e o Poder Público que falha em seu poder-dever de vigilância.

A atuação proativa do STJ, ao interpretar a legislação de forma teleológica — transformando a faculdade do artigo 40 da Lei 6.766/79 em dever, e aplicando a Teoria Menor do CDC de forma autônoma —, tem sido decisiva para coibir práticas de mercado predatórias e garantir a efetividade dos direitos dos consumidores e da coletividade.

Contudo, a robustez teórica do sistema enfrenta desafios práticos consideráveis. A morosidade do Poder Judiciário ainda é um obstáculo à célere reparação dos danos. A dificuldade de localizar patrimônio em nome dos fraudadores, mesmo após a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, pode tornar as condenações inócuas. E, talvez o mais complexo dos desafios, o dilema fiscal imposto aos municípios, que são obrigados a arcar com os custos de regularização de áreas degradadas por particulares, evidencia uma tensão entre a justiça do caso concreto e a sustentabilidade das finanças públicas.

Diante desse cenário, algumas recomendações práticas se impõem:

  • Para os Advogados: A litigância em casos de loteamentos irregulares exige uma estratégia multifacetada. É fundamental cumular os fundamentos jurídicos, articulando as proteções do CDC, da Lei de Parcelamento do Solo e do Código Civil. A produção de prova da fraude e do abuso de direito é crucial para a aplicação da Teoria Maior da desconsideração, especialmente contra administradores não-sócios. Nos pedidos indenizatórios, é preciso adequar a pretensão à jurisprudência mais recente do STJ, distinguindo os pedidos de rescisão e manutenção do contrato e sendo criterioso quanto aos lucros cessantes em lotes não edificados. Por fim, a diligência na esfera criminal é indispensável, pois pode ser a chave para superar a alegação de prescrição.
  • Para os Cidadãos e Adquirentes: A prevenção é o melhor remédio. Antes de adquirir um lote, é imprescindível realizar uma due diligence imobiliária mínima: exigir a matrícula individualizada e atualizada do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis; verificar na prefeitura se o loteamento foi devidamente aprovado e se possui o alvará correspondente; e desconfiar de ofertas com preços muito abaixo da média do mercado e promessas de regularização futura. A formalização do negócio por meio de instrumentos públicos e o auxílio de um profissional especializado são investimentos que podem evitar prejuízos devastadores.

Em última análise, o combate à proliferação de loteamentos irregulares transcende a esfera jurídica e demanda uma atuação coordenada entre o Judiciário, o Ministério Público, os órgãos de fiscalização administrativa e a própria sociedade civil, na busca por cidades mais justas, sustentáveis e legalmente ordenadas.


André Luiz Guella
OAB/SC 22.640

Fernanda Salete Guella
OAB/SC 27.534

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